GERAÇÕES DE BAMBAS LOUVAM BOLACHA (O Globo – 16/02/08)
Autor de sambas como ‘Portela na avenida’, Mauro Duarte ganha tributo idealizado por Alfredo Del-Penho.
Quem foi Mauro Duarte, mineiro que é nome de praça em Botafogo, lembrado com saudade quase 20 anos depois de sua morte (em 1989, aos 59 anos), figura de destaque de uma notável geração de sambistas do bairro, favorito de nove entre dez cultores da melhor música carioca, melodista raro e compositor de “Canto das três raças”, “Portela na Avenida”, “Menino-Deus”, “Lama” e de vários outros sucessos que se incluem entre os mais cantados nas rodas de samba, não só do Rio, mas de todo o país?
Se os amigos e parceiros pudessem responder em coro, talvez dissessem: “Mauro Duarte, o Bolacha, foi um sambista genial, muito menos conhecido do que sua obra”. Paulo César Pinheiro, velho amigo e o mais constante parceiro, fala com autoridade:
- Criador de obra poderosa, invejável, atemporal, Mauro levou para seus sambas em tom menor, no que era um craque, toda a sua vivência das ruas, dos blocos, da boemia. Se era triste? Não o homem. Acredito que tenha passado para a música, para o lamento de seus sambas, toda a vida sofrida que teve.
Disco será lançado dia 3 de março, no CCC
Quem ainda não conhece a obra deste mestre do tom menor — e mesmo aqueles que se orgulham de conhecê-la — deve se preparar para “O samba informal de Mauro Duarte”, CD duplo que a Deckdisc vai lançar na noite de 3 de março, no Centro Cultural Carioca. São 30 faixas, 19 inéditas e 11 com músicas já gravadas, mas pouco conhecidas. O resultado é definido por Pinheiro como “o mais importante trabalho dedicado ao samba nos últimos dez anos”.
Dez anos? Se se considerar o tipo de inventário que foi feito, visando a tornar mais conhecido um compositor da grandeza de Mauro Duarte, é possível suspeitar que não há trabalho semelhante sobre samba em toda a discografia brasileira, recente ou não.
Muitos são os envolvidos no projeto, mas, a citar um, idealizador e realizador, ele é o compositor, cantor, violonista e obstinado pesquisador Alfredo Del-Penho.
- Não conheci Mauro Duarte - diz. - Tinha 8 anos quando ele morreu. Mas, graças ao pesquisador Paulo César Andrade, a quem esse projeto deve muito, fiquei sabendo de seus sambas, os mais conhecidos, gravados por gente como Clara Nunes, Roberto Ribeiro, Paulinho da Viola.
Del-Penho já estava definitivamente envolvido com a música. Com o bandolinista Pedro Amorim, outro antenado com o samba, o choro e outras riquezas, passou a tocar em bares, um deles o Partitura, já pensando na formação de um grupo compacto, onde todos cantassem, tocassem e tivessem repertório. Isso resultou na criação no quarteto Samba de Fato: Del-Penho e Amorim, mais os cantores e ritmistas Pedro Miranda, um dos mais brilhantes egressos da geração Lapa, e Paulino Dias, diretor musical da Companhia Folclórica da UFRJ. Passaram a ensaiar e tocar em almoços de domingo, na casa um do outro, com o anfitrião sendo o cozinheiro, no que, segundo opinião unânime, Amorim era o mais competente.
Pois é o Samba de Fato que está nas 30 faixas do CD duplo, produção de Del-Penho. Há, claro, artistas convidados, um deles Pinheiro. Outra, Cristina Buarque, amiga de Bolacha e profunda conhecedora de sua obra, inclusive a inédita (Cristina, na verdade, é das maiores colecionadoras de fitas cassete com raridades do samba, de todas as épocas e lugares, devendo-se à sua generosidade muitas das descobertas e agora gravadas).
Antigos fragmentos viraram músicas completas.
As 30 faixas foram colhidas em várias fontes. “Acerto de contas”, “Mineiro pau”, “O samba que eu lhe fiz”, “Engano”, “Compaixão”, “Falou demais”, “Começo errado”, “Lamento negro”, “Samba de botequim” e “Sublime primavera” tiveram melodia ou letra trabalhadas por Pinheiro a partir de primeiras partes, fragmentos, frases soltas, idéias deixadas com ele pelo amigo. “A água rolou”, “Caprichosos de Pilares” e “Reza, meu bem”, também são inéditas, mas já estavam inteiramente prontas em 1989.
- Mauro costumava chegar em casa tarde, já com uma idéia na cabeça, e a passava para o papel ou para o gravador — conta Pinheiro. — Depois, esquecia. Mas os filhos tiveram o cuidado de guardar alguns desses esboços, como eu guardei os nossos no meu arquivo (uma coleção preciosa, que reúne as cerca de mil músicas gravadas de Pinheiro, as quase 500 inéditas e as 150 que ele, letrista consagrado, também musicou).
Das demais faixas, já foram gravadas “Lenha na fogueira” (por Walter Alfaiate, com a letra alterada), “Desde que me abandonou” (pelo próprio Mauro, no Projeto Brahma Extra de 1988), “Sofro tanto” (Cláudia Savaget), “A água rolou” (pelo sambista Portella, de São Paulo), “Não sei” (Sônia Santos, em 1975), “Mais consideração” ( Mart’nália, em seu LP de estréia), “Sonho de criança” (Noca da Portela, co-autor), “Tempo de amigo” (Ataulfo Alves Jr.) e “Morro”, única parceria com Ivone Lara (Elza Soares).
Outras descobertas devem-se a Élton Medeiros, de cujo baú saíram sambas feitos com Mauro: “A mulher do pedreiro” e “Malandro não tem medo” (as vozes e a batucada dos dois autores, gravadas numa fita, são usadas como vinhetas no início de cada faixa); a Walter Alfaiate, que se lembrava de música e letra de “Eu não quero sofrer”; a Cristina e aos filhos de Mauro, que costumam cantar, nas noites do bar Bip Bip, em Copacabana o samba “Carnaval”, parceria com o falecido Adélcio de Carvalho, também de Botafogo. É ainda com Adélcio a inédita “Samba do eleitor”. “Sonho e realidade” é a única parceria com o baiano Edil Pacheco.
- A turma que está chegando precisa conhecer os sambas do Mauro, para saber como é que se faz — afirma Pinheiro — São sambas ancestrais, de outro tempo, um tempo em que as linhas melódicas tinham de ser, necessariamente, bonitas. Quem faz samba assim, hoje, vive em guetos, está escondido, não aparece. Talvez por isso Mauro seja um dos parceiros de quem sinto mais falta.
Os arranjos dos CDs foram feito coletivamente pelos quatro componentes do Samba de Fato, que se apresentam toda quarta-feira no Trapiche Gamboa. A fidelidade ao estilo de Bolacha, aquela ancestralidade ressaltada por Pinheiro, foi a palavra de ordem. Depois disso, quem sabe não chega a vez dos sambas mais conhecidos?