Majestade do Samba

PORTELA é FATO E FOCO



sábado, 8 de fevereiro de 2020

Lendas da PORTELA (Nov/2009)

Lendas da Portela 


Eram duas meninas. 

A vida as juntou um dia; separou-as depois para reaproximá-las agora. 

Quem poderá saber o quanto valeu tudo e tanta coisa depois de tanta vida ter passado?
Cada lembrança, cada gesto? Cada um daqueles momentos - e foram tantos! Como saber isto quando ambas relembram cada pedaço da vida tanto tempo depois? 

Muito mais quando a vida valeu tanto à pena 

Era uma vez... Em um dia qualquer de um distante fevereiro de 1918, aqui em nossa cidade nascia a menina Doralice.. 

Próximo aquele dia, dois ou três anos depois, em uma cidade próxima nascia a outra menina: Maria das Dores.

Fábrica de Papelão (prédio à esquerda)

Mais ou menos por esta época um jovem nascido duas décadas antes, em local bem próximo ao de Doralice, sem nunca tê-la conhecido antes, perambulava altivo e curioso pelas ruas do centro da cidade observando todo o desenrolar de tantas mudanças.

Tempos de grandes transformações.

Olhava para um lado, via a "Paris dos Trópicos". Para outro a "Pequena África".

Que seria dessas três vidas, que desígnios as fariam convergir para as ruas distantes de Oswaldo Cruz e Madureira?

Esse tal jovem "subiu" antes. À época do nascimento das meninas, dois ou três anos depois, já estaria "aprontando" em Oswaldo Cruz fundando o bloco Baianinhas, semente da escola que seria sua própria vida. Ele e mais Rufino e Caetano.

Tempos depois - aos quatro anos - Doralice, que já não morava no Morro do Pinto, tem sua mãe acidentada e a família vai morar em Oswaldo Cruz deixando para atrás a rua da América, próxima à Central do Brasil.

Quem já passou por isso sabe que poucas coisas na vida marcam mais a mente de uma criança do que uma casa nova. Nova rua, novos vizinhos, novos mistérios.

Morava agora em uma das casas da chácara conhecida como Fazenda Theófilo, na esquina da Estrada do Portela com Rua Joaquim Teixeira, em cuja casa principal viria depois morar, vinda de Queluz, no vale do Paraíba paulista, a lendária família Nascimento: seu Napoleão, o pai, o inesquecível Natal, Vicentina e Nozinho.

Logo, logo, em 1923, assistiria o encontro, o namoro e depois o casamento de sua tia Diva com o jovem Caetano, desenhista da imprensa naval apaixonado por carnaval, morador de Quintino mas que, por razões óbvias, não saia de Oswaldo Cruz. Seria o artista principal e o "cérebro" da formação da futura Portela. 


Mangueira (terreno aonde nasceu a PORTELA)

Era uma área grande, de árvores frondosas, onde se destacava uma enorme e mítica mangueira que está lá até hoje. Até quando estará?

Sob aquela mangueira brincaria de boneca, "brigaria" muito com Vicentina e travaria uma parceria com Nozinho repleta de traquinagens e peripécias de infância e adolescência.. 

Viu ali sua escola querida ser fundada por aquele mesmo jovem a quem nunca houvera conhecido; aquele mesmo que perambulava altivo e curioso pelas ruas centrais da cidade observando suas transformações.

Ali estavam Paulo, Rufino e seu tio Caetano. Alicerces da escola que tanto marcaria sua vida. Via crescer a cada dia aquele grupamento; via sua tia bordar a bandeira raiada azul e branca; a primeira bandeira de duas faces da escola, a mesma que está aí até hoje; via passar o livro de ouro e a "caixinha" de seu Rufino que custeavam o carnaval; via seu tio projetar a águia, marca maior do nosso orgulho e da nossa força.

Na vizinha casa de seus tios, nos fundos da sede da jaqueira, veria as primeiras e rudimentares alegorias serem construídas por ele acompanhado por Candinho, Arlindo Costa, seu Juca e Jibóia; como poderia imaginar as dimensões que aquelas geringonças alcançariam nos carnavais que hoje assiste pela televisão?


Bar do Nozinho (primeira sede da PORTELA e aonde Zé Ketti compôs o Jaqueira da PORTELA)

Em Barra Mansa e em toda a região do vale do rio Paraíba a decadência da lavoura cafeeira deixava longe os tempos de fartura e de muitos empregos por ali.

Entre tantas outras, a família de Maria das Dores, sem o pai, migrava para a capital na esperança de novos empregos para seus irmãos e os sobrinhos criados por sua mãe. A nova moradia ficava no alto da Ladeira do Faria, quase na junção com a Ladeira do Barroso, no cume do morro da Providência, atrás do prédio da Central do Brasil.

De lá nunca mais sairia: - É o meu morro!

Vida que segue...

Aqui, na então capital, o Brasil vivia a farsa de uma república proclamada e não praticada; o país nas mãos ora da oligarquia do café, ora da do leite. Os jovens tenentes do exército brasileiro eram aniquilados pelas tropas federais no Forte Copacabana e entravam para a história como os "Dezoito do Forte". Mas a luta dos tenentes continuaria...

Já com Getúlio no poder chegava a adolescência dessas duas meninas.


Caetano (agachado) e Rufino (a direita)

Doralice, com o adoecimento de seu pai, após breve passagem por uma camisaria de Madureira, consegue aos 13 para 14 anos se empregar em uma fábrica que produzia embalagens de papelão para a casa Granado, localizada na Rua Visconde da Gávea número 121, quase ao pé do Morro da Providência, bem ali onde morava Maria das Dores com sua mãe e seus irmãos.

A mesma fábrica onde, pouco tempo depois, a menina Maria das Dores conseguiria seu primeiro emprego, longe ainda de ter completado seus primeiros quinze anos. Primeiros de muitos e muitos quinze anos.

Ali o primeiro encontro de duas meninas. Para uns ... destino; para outros... coisa dos deuses do carnaval...

Na verdade a menina Doralice era a Dora, e a menina Maria das Dores era Dodô.

Dora mesmo tão menina era quase dirigente da "Escola de Samba Deixa Falar", de Oswaldo Cruz. A ela cabia cuidar da bandeira e levá-la para casa após os ensaios além exercer as funções de diretora social, vez por outra substituindo uma ou outra porta-bandeira ausente. Naquele período vencera o concurso de venda de votos tornando-se rainha da escola.


De cima, a esquerda, Idealina (que se casaria com João da Gente); Laudelina (operária da mesma fábrica com Dora e Dodô); Dora; Deovânia (irmã de Dora); Rosinha (também operária da fábrica); Nitinha (tia de Dora) e embaixo Jorcélio (irmão de Dora)

Não havia uma semana que Paulo deixasse de jantar em casa de sua família. Por ali todos aqueles jovens que construíram uma história tão bonita. Uma história que ela via nascer sem poder imaginar toda sua dimensão. Na fábrica a menina Dora era "Chefe de Mesa", já ali também acumulando grande responsabilidade. 

E foi assim que em uma manhã do tempo a fábrica de embalagens recebia uma nova operária. Menina ainda, magrinha, esguia, olhinhos muito espertos, com um ar muito abusado. Trabalhando sob o comando de Dora, Dodô passava a fazer parte do grupo do qual faziam parte Rosinha, Laudelina e Miranda, trabalhadoras residentes em Oswaldo Cruz e que no carnaval desfilavam na "Vai Como Pode".


Paulo da PORTELA (a esquerda)

Nos primeiros tempos, Dodô ia almoçar com sua mãe e suas irmãs ali perto em sua própria casa, exceto às segundas-feiras. Nesse dia não subia. Ficava ali ouvindo Dora contar as histórias do fim de semana: os ensaios da escola, os rapazes e os preparativos para o carnaval.

Pela primeira vez ouvia nomes que seriam presença constante em sua vida futura: Cecília, Aidéia e Braulina, primeiras porta-bandeiras da escola, Antonio mestre-sala, Claudionor, Benício, Bam-Bam-Bam. Ouvia falar do vozeirão de João da Gente e de Ventura, da gentileza de seu Armando Passos e seu Cláudio Bernardo, os sambas compostos por Alvarenga, Alcides; as festas na casa de seu Vieira, de seu Napoleão e de D. Esther, e dos ensaios, que eram realizados na rua.

A menina Dora contava que eram Cláudio Bernardo e Paulo que puxavam o samba enquanto João da gente, Claudionor e Alcides versavam. Seus olhos brilhavam quando falava da bateria comandada por João da Gente e do fascínio especial exercido pelas pastoras Noêmia, Rosa, Huga, Maria de Lourdes além de Diva, Margarida e Ninita, suas tia, mãe e irmã, todas animadíssimas esperando o carnaval chegar.

E contava da presença de Paulo, sobretudo a presença soberana de Paulo da Portela.

Com o passar dos dias, a menina Dodô não mais ia almoçar em casa dia nenhum. Preferia trazer a comidinha de sua mãe na marmita e poder ouvir tantas histórias fascinantes para ela. E já agora enrolava seu avental branco na ponta do cabo da vassoura e se fazia de porta-bandeira arrancando gargalhadas da platéia.



Da esquerda, Benjamin (filho de Sergio Hermógenes e D. Amadora), ex-noivo de Dora; seu Armando Passos; D. Amadora (esposa de seu Hermógenes, quase sogra de Dora); Paim; Aidéia (uma das porta-bandeiras antecessoras de Dodô) e José (irmão de Benjamin)


Com o tempo o bailado diário de Dodô e sua vassoura deixava Dora encantada com toda aquela graça que a cada dia se aprimorava nas brincadeiras da menina. Dora começava a olhar aquela dança menos como farra de hora de almoço, observando aqui e ali, corrigindo postura da moça e já a olhando com outros olhos: quem sabe? 

E foi assim que aconteceu um dia. 

Quando se viu sem Cecília, sem Braulina, sem Aidéia, Dora viu surgir a oportunidade que tanto esperava. Sugeriu à escola que desse uma oportunidade à jovem Dodô. Com a aprovação de Paulo, Dodô foi convidada e aceitou fazer um teste. 

Eram os preparativos para o carnaval de 1935. Dodô ainda com quatorze anos partia ao lado de sua mãe para o distante subúrbio de Oswaldo Cruz, não sem antes, juntas, rezarem o terço. 

De bonde até Madureira, de lá até Oswaldo Cruz a pé: ia ao encontro de sua história. 

"Amadrinhada" por Dora, Dodô foi recebida primeiro pelo mestre-sala Antonio e depois pelo próprio Paulo da Portela que se mostrou surpreso e preocupado com a pouca idade da menina. Quando o ensaio começou, sob o curioso olhar de todos, não deu outra: foi show de bola, a escola acabava de conhecer sua nova porta-bandeira. 

Dora, Dodô, Laudelina, Rosa e Miranda, estas também operárias da fábrica de embalagens, se abraçaram muito. Tornaram-se inseparáveis a ponto de transformar os momentos de almoço da fábrica em cada vez mais animados ensaios técnicos até chegar o carnaval de 1935.

Os desfiles já se realizavam desde 1932, sempre com a Mangueira campeã. A imbatível Mangueira de Cartola, de Carlos Cachaça, de Massú, de Marcelino. A partir daquele ano as escolas conquistariam novo status dando início à trajetória que transformaria os desfiles na maior festa do Brasil. 

E chegava a noite do desfile. 

Ainda em casa, antes de rezar o terço e partir com sua mãe ao encontro da escola, Dodô fazia gestos e volteios diante do espelho. Olhava fixamente sua própria imagem como se soubesse que nunca mais veria ali aquela adolescente descompromissada, descomprometida. 

Parecia saber que depois daquele desfile sua história e a da escola seriam uma coisa só: abriam ali o incomparável "livro de nossa história", repleto de "conquistas a valer". 

Já na Praça Onze, com muito orgulho, Dora entregava para Dodô a jóia mais preciosa de toda aquela gente, aquela bandeira tão bonita e que ela guarda até hoje. 

Ao iniciar o desfile, ao ouvir o comando de Paulo, Dodô posicionou a bandeira e olhou em volta. Só então percebia como era diferente pendurar o avental de trabalho na ponta do cabo de vassoura, rodopiar entre as mesas da oficina, e estar ali empunhando a bandeira "de verdade", sendo observada por aquela multidão e pela já então imensa e aguerrida torcida da futura Portela. 

O tema da "Vai Como Pode", último desfile com este nome, parecia prever os carnavais de hoje: "O Samba Dominando o Mundo", de Antonio Caetano. Foram dois sambas apresentados: "Guanabara" e "Alegria Tu Terás", dos onipresentes Paulo e Caetano respectivamente.

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