SINAL FECHADO? (O Globo – 2º Caderno - 26/10/2007)
Reflexão em torno de Paulinho da Viola
E lá vem Paulinho da Viola, fascinado por automóveis, fluindo sem retenções no seu novo trabalho, não mais um disco acústico, mas o “Acústico”, apresentando à geração MTV a gloriosa sutileza de “Timoneiro”, “Coração leviano”, “Para um amor no Recife”, “Pecado capital”... Quando no meio da avenida se acende uma luz vermelha.
Na obra deste vascaíno de Botafogo, “Sinal fechado” ocupa um lugar sui generis desde 1969, ano em que conquistou o Festival da Record. Não é samba, nem choro, nem vela, apesar de soar como oração profana. Concebida dentro de um ônibus, no Aterro, e influenciada por Villa-Lobos, às vezes, é quase dissonante. Registra um diálogo entre dois motoristas parados lado a lado, tensos como num grid de Fórmula-1:
“— Olá, como vai?
“— Eu vou indo. E você, tudo bem?
“— Tudo bem. Eu vou indo correndo, pegar meu lugar no futuro, e você?
“— Tudo bem. Eu vou indo em busca de um sono tranqüilo, quem sabe? (...)”
Paulinho não raro escala a canção como um interlúdio, separando as metades do show. Isso também ocorre neste CD/DVD “Acústico MTV”: faixa nove em 15, faixa 10 em 21. O autor sabe a perturbação que ela nos causa. Porque, mesmo nas suas composições mais melancólicas, a tristeza vem filtrada por uma serenidade zen-sambista. “Sinal fechado”, não. É iminência de a luz verdejar, angústia, pressa, esquecimento, fragmentação.
No século XIX, Leon Tolstói recomendou algo como: “Se queres ser universal, fala da tua aldeia.” Até os maiores gênios — e Paulo César Batista de Faria é um dos nossos grandes, embora desprovido do senso de marketing pessoal de alguns outros — são gênios não porque pairam no espaço e no tempo, mas porque são escravos da sua aldeia e do seu instante sobre a terra. Ou “Não sou eu quem me navega/ Quem me navega é o mar”.
Como o tempo de Paulinho sempre foi hoje, “Sinal fechado” tornou-se um clássico porque é a cara (fechada) de 1969, o primeiro dos dez anos sob a vigência do nefando AI-5. O ato discricionário baixado pelo marechal-presidente Arthur da Costa e Silva permitia ao regime, entre outras coisas, cassar os mandatos dos parlamentares e os direitos políticos de qualquer cidadão por dez anos, suspender a garantia de habeas corpus nos casos de “crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”.
Quando Paulinho parou os dois motoristas no “Sinal fechado”, portanto, até o personagem-título corria o risco de ir em cana, simplesmente por ser vermelho. É deste sufoco, e não só da correria, competitividade, anonímia e amnésia da vida moderna, que a canção (não) nos fala. O subentendido ao mesmo tempo lhe garante a temporalidade — ela se sustenta melhor como retrato da época do que, por exemplo, as metáforas kitsch de “Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando)”, de Geraldo Vandré — e atemporalidade.
Um dos motoristas de Paulinho da Viola se desculpa com o outro: “Tanta coisa eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas”. De uma forma ou de outra, muitos ainda somem na poeira ou no pó das ruas, como reafirma, de modo contundente, uma canção de dois anos atrás, “Não se preocupe comigo”, do único CD do F.UR.T.O., grupo-projeto de Marcelo Yuka. Ela dá voz fictícia ao seu primo “Danilo Carvalho de Souza, desaparecido na manhã de algum dia de 1999”: “(...) Não se preocupe comigo/ Mas com a época que devora caminhos e destinos/ Com tanta pressa/ Apagando rastros que nos ensinam e nos permitem voltar/ Não se preocupe comigo/ Mas eu não volto mais pra casa não.”
Aliás, do jeito que as coisas vão, temo que em mais uma geração a premissa de “Sinal fechado” não seja mais compreendida, a não ser, talvez, nos exames teóricos do Detran ou no terreno da pura licença poética. “Peraí, como assim, dois motoristas param num sinal fechado?”, indagar-se-á o habilitando de 2032. “PARAM num sinal?!” Já agora ninguém pára mais num sinal fechado, mas todos reclamam dos avanços do Renan.
A justificativa da insegurança, concreta, letal, desconsidera a própria infração de avançar o sinal como fator a realimentar a sensação de insegurança. De qualquer forma, isso ocorre a qualquer hora, em qualquer esquina, na maior cara-de-pau. Cometido também por motociclistas e ciclistas, que crêem que as leis do trânsito não se aplicam a eles.
Ainda que vivêssemos num mundo melhor, na qual dois motoristas parassem em sinal fechado, respeitando o mais fraco pedestre, eles provavelmente não enxergariam o amigo no carro ao lado, tão carregado o insulfilm aplicado aos vidros dos veículos. (Não sei quanto a você, eu não faço sinal para táxis mascarados; ué, não é para evitar olhar para dentro deles?) Ainda que nos teletransportássemos a um universo de ficção científica, no qual os dois motoristas não apenas parassem em sinal fechado como não escurecessem o vidro, eles não se veriam, entretidos aos respectivos celulares. Não entre si, claro. Pensando bem, até aí, por vias transversas, vigoraria a incomunicabilidade de “Sinal fechado”.
Como a coluna se inspira na obra de um dos talentos da família Faria, aproveito para registrar meu pesar pelo falecimento, no sábado passado, aos 88 anos, do violonista César Faria, fundador, ao lado de Jacob do Bandolim, do conjunto Época de Ouro, pai de Paulinho da Viola, avô de João Rabello. Descanse ao som do chorinho.